sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Quando eu quis ser grande

Ser grande era pertencer, eu pensava. Queria me tornar grande para poder ser, enfim, parte de vocês. Quando chegaria? – eu divagava todas as noites. – Será hoje? – ritualizava toda a espera. Não, não era hoje. Eu tinha paciência. Tentava me aproximar pelas beiradas, mas quando descobria um lugar vago, era rapidamente afastada dali. Foi assim quando vocês me tiraram daquela cama e me devolveram à rede localizada no pior canto da casa. Nem ouviram que chorei baixinho a noite inteira, nem queriam ouvir. No outro dia, eu sempre me contentava com as migalhas de atenção. – senta aqui, pode ouvir nossa conversa, hoje é seu dia de sorte porque vamos te levar à praça logo ao anoitecer – vocês diziam e eu explodia de felicidade. Uns não queriam de jeito algum: eu incomodava, atrapalhava como uma caixa de papelão que polui a decoração da sala. Mas eu sabia que quando fosse grande seria tudo diferente. Era meu segredo e meu maior sonho: ser grande. Quando o dia chegasse, vocês iriam me olhar de verdade e me amar tanto quanto eu os amava. Eu teria de volta a minha voz. Então, tinha pressa em ser grande, nem que para isso eu passasse maior parte do tempo sozinha, pulando fases, incorporando seriedades. Eu, tão menina, queria homens consideravelmente mais velhos apaixonados por mim e surpresos pela maturidade que não condizia com a idade cronológica. Era deleite, era gozo. Ganhei minha maioridade bem antes do tempo, tinha carta branca para viajar sozinha para onde bem entendesse, comecei a trabalhar antes dos dezoito e não fui morar em outro país apenas por falta de grana, mas ousei mais do que poderia supor, extrapolei os limites de cada fase e fui além, tudo para chegar mais rápido. Se eu queria pertencer, precisava ser grande. E me tornei - um dia me dei conta. Olhei ao redor e tudo era como imaginava, como visualizei, menos pertencer a vocês. Na minha luta íntima, solitária e silenciosa, fui me afastando e vocês, como sempre, nunca notaram. Sangue do mesmo sangue, tantos traços comuns, tantos encontros contrastando com abraços frios e as tentativas de conversas vazias e desprovidas de sentido. Hoje só sinto essa estranheza do lado de cá e uma indiferença enorme desse lado daí. E tudo fica por isso mesmo? Não. Cecília Meireles provavelmente teria transformado tudo em poesia, como se tocando fogo em seus sentimentos, jogasse depois as cinzas, silenciosa, no mar. Fiz isso por muitos e muitos anos, até aprender com Clarice (sim, a Lispector): “Há o direito ao grito, então eu grito”. Porque, depois de tanto tempo, eu descobri que para gritar não precisa ser grande.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Das escolhas I

Ela tinha duas escolhas: recuar ou se expor. Difícil identificar a mais sábia para o momento. Tomou mais algumas cervejas, fumou um cigarrinho e respirou fundo. Optou pela espontaneidade, mesmo sabendo de todos os riscos que ela também poderia trazer. Previa as cenas de um já conhecido filme de drama, onde era sempre a figurante imóvel, tímida, sem voz. Decidiu reescrever o roteiro – ali seria diferente, tinha de ser. Se bem sabia o que queria, por que aceitar que uma situação tão constrangedora estragasse sua noite? Sempre admirou as mulheres que não davam o braço a torcer fácil, que ousavam assinar seus nomes embaixo de cada feito repudiado pelo falso moralismo. E, além do mais, não tinha nada de ilegal em mover algumas pecinhas no tabuleiro e mostrar: “ei, eu estou aqui e não vou sair aborrecida desse cenário antes de dizer o que penso e sinto”. Isso, sim, era coerente, ela sabia, mesmo que um ciclo se fechasse logo após. Significava permitir se enxergar e agir sob outras óticas, sobretudo. Nem sabia da desolação do dia seguinte, daquela sensação ressacada advinda da exposição, da falta de resguardo, de ter seus passos acompanhados por olhares curiosos e de possíveis desafetos. Mas, ainda bem, sabia que se fortalecia por escolha própria, por não se acovardar em se impor.
E só os deuses e as pessoas mais íntimas captariam a imensa importância disso.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Vinho






in vino veritas.

e no jogo?

sábado, 6 de setembro de 2008

Pedindo licença


Sentou-se bem de frente a mim, naquele colchão na varanda da casa da lagoa. Trouxe o violão e me deu o primeiro sinal da sintonia inata, mesmo sem trocar mais do que cinco palavras - a discrição. Ainda sem nem saber o seu nome, num impulso não censurado, dias depois, foi ele que eu quis tirar pra dançar e a linguagem corporal foi compreendida na medida exata, fincando em solo a ponte que estreitaria a distância, mais um pouco à frente - a surpresa. Depois eu tive medo, "pois o próximo instante era o desconhecido". Lembrei de Clarice. Recuei e voltei em flor semi-aberta, numa mudança de perspectiva ponderada e amadurecida - o discernimento. Uma tranqüilidade passou a fazer morada por essas bandas e a sensação não era de algo novo, esse entusiasmo tantas vezes efêmero. Não, parecia mais que eu havia descoberto um baú de antigüidades, conservadas da corrosão do tempo por uma perfeita redoma. Lá estavam caixinhas de músicas e letras em papéis amarelecidos. Deleitei-me, como se soubesse que aquilo sempre tivera sido meu - os ritos. Tinha cheiro de Clarice de novo e sua felicidade clandestina, ao se divertir num balanço, abraçada no livro de Lobato que contava as Reinações de Narizinho - as coisas atemporais.




* * * *
Ps: Texto escrito em 08/08/2007. Está no antigo blog, mas eu gosto tanto dele que resolvi trazê-lo pra cá.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Esse samba

Eu fui sozinha. Deus, como fazia tempo que eu não ousava tanto. A Ribeira, tão vazia em fim de tarde, tinha cheiro de saudosismo como um retrato em preto e branco. Tive medo. Cheguei, como dizem, “pelas beiradas”, quase me escondendo. Tirei o celular da bolsa, fingi tentar ligar para alguém, olhei meio inquieta pro relógio... Pelo o amor dos deuses, como é difícil estar só estar só vez em quando! Devo ser mesmo muito extremista, pois bem sei a vontade danada que tenho de dar minhas voltas solitárias, a fim de conferir o ambiente, quando saio com outras pessoas. No entanto, naquele buraco da catita, eu achei ruim estar só. Talvez eu goste de uma "liberdade segura", por assim dizer. Mas, voltando: o samba ia esquentando e todo mundo agregado. Com quem eu iria comentar que a música Desalinho é a cara da minha mãe? E que Cartola (e todo o samba da velha guarda da mangueira) é mantido no repertório das batucadas da minha família há mais de 40 anos? Só então eu percebi que o samba se torna infinitamente mais triste quando se está só. Samba é música de roda, de olhar no olho, de se apropriar do tamborim alheio enquanto o dono sai para ir ao banheiro ou pegar mais uma bebida... O que fazer? Decidi respirar fundo e curtir mesmo assim. Pelo samba, o sacrifício era mais que válido. A cerveja e a música foram me animando cada vez mais e, quando percebi, já estava com os pés ganhando vida própria, involuntários, doidos para sambar. O canal se abriu e as pessoas ao redor me acenaram com a mão, num gesto de aprovação à ousadia que começara tão cabisbaixa. As meninas da mesa à frente tomaram coragem e me chamaram para perto. Os músicos tiraram o chapéu e atenderam nosso pedido de Tiro ao Álvaro. Quase havia me esquecido que o samba é isso. O samba é buliçoso. O samba balança, mas não cai.