terça-feira, 29 de abril de 2008

Receita para lavar palavra suja

Mergulhar a palavra suja em água sanitária, e depois de dois dias de molho quarar ao sol do meio dia.

Algumas palavras, quando são alvejadas ao sol, adquirem consistência de certeza, como, por exemplo, a palavra vida. Existem outras, e a palavra amor é uma delas, que são muito encardidas e desgastadas pelo uso, o que recomenda esfregar e bater insistentemente na pedra e depois enxaguar em água corrente. São poucas as palavras que resistem a esses cuidados, mas sempre existem aquelas.

Dizem que limão e sal tiram sujeiras difíceis, mas toda tentativa de lavar a piedade foi sempre em vão. Eu nunca vi palavra tão suja quanto perda; perda e morte, na medida em que são alvejadas, soltam um líquido corrosivo que atende pelo nome de amargura, que é capaz de esvaziar o vigor da língua. O conselho nesse caso é mantê-las de molho num amaciante de boa qualidade.

Mas se o que você quer é só aliviar as palavras do uso diário, pode usar sabão em pó e máquina de lavar. O perigo é misturar palavras que mancham no contato umas com as outras. Culpa, por exemplo, mancha tudo que encontra, e deve sempre ser alvejada sozinha. Outra mistura pouco aconselhada é amizade e desejo. Desejo é uma palavra intensa e pode, o que não é evitável, esgarçar a força delicada da palavra amizade.

É importante não lavar demais as palavras sob o risco de perderem o sentido. Aquela sujeirinha cotidiana, quando não é excessiva, produz uma oleosidade que dá vigor aos sons.

Muito importante na arte de lavar palavras é saber reconhecer uma palavra limpa. Conviva com as palavras durante alguns dias, deixe que se misturem em seus gestos e que passeiem pela expressão de seus sentidos. À noite, permita que se deitem não ao seu lado, mas sobre o seu corpo. Enquanto você dorme a palavra plantada em sua carne prolifera em toda a sua possibilidade.

Se você puder suportar essa convivência até não mais perceber a presença dela, aí você tem uma palavra limpa.

Uma palavra limpa é uma palavra possível.

Viviane Mose
Filósofa, psicanalista

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Me lava a alma e me leva embora

Parecia um inferno astral fora de época. Após um mês de reclusão voluntária, resolveu tomar um banho demorado e se arrumar para a saída da noite, como se estivesse seguindo um precioso ritual. Escolheu a calça jeans que melhor desenhava o seu corpo da cintura para baixo e uma blusa vermelha, decotada na medida certa para não ficar vulgar, apesar da cor já sugestiva. Colocou um salto alto enquanto se maquiava e lembrou-se de uma vez que leu numa revista que a primeira peça de roupa que toda mulher deve vestir é o salto alto, mesmo que nem fosse sair com ele, só pra se sentir impecavelmente sensual. Riu sozinha por não saber se enquadrava isso no campo das coisas sábias ou fúteis. Quebrando toda a rotina, decidiu não ir dirigindo daquela vez e aceitou a carona de uma amiga. A intenção era ficar o mais livre possível mesmo, sem aquela preocupação por antecedência de não poder extravasar a seu bel prazer. Chegou ao local do show que iria assistir e notou-se muito receptiva em relação aos outros, como se o universo, naquele instante, devolvesse-lhe o forte magnetismo de outrora. Surpresa e animada, bebeu a primeira cerveja e ficou ligeiramente tonta. Estava em comunhão com as pessoas e com todos os “eus” que lhe habitavam. Deixou a saudade mal curada lhe invadir e salpicar-lhe na cara uns bons momentos de uns anos atrás, quando cantou a despedida dos cegos do castelo para cuidar de um jardim, do jantar e do céu e do mar. Por onde ele andou enquanto ela o procurava? Salpicos de desencontros, também. Bebeu mais três cervejas. Abraçou com intensidade. Cantou em coro. Gargalhou junto de amigos sobre as tantas (e atuais) fases de agouro. Deixou que o mar ao lado e a maresia lavasse tudo isso. Sentiu-se realmente bem. Gritou aos quatro ventos: demônios devidamente exorcizados!

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Da solidão e o eterno-retorno

Mesmo após mais de dez anos (talvez bem mais), eu continuo andando em círculos em alguns aspectos. É a velha lei do eterno-retorno que faz todo o sentido para mim. Perguntando a um colega de faculdade se ele já tinha formado o seu grupo para uma prova prática de uma disciplina de laboratório, ele brincou dizendo que não, que estava “avulso”. Ri e fiquei pensativa: eu sou avulsa o tempo todo então. Parece-me que não importa muito o local, a mesma sensação não demora a retornar.
Sou de tantos. Sou de tão poucos. Sou de ninguém. Passeio por entre todos os grupos. Vejo-me um pouco em todos e em nenhum ao mesmo tempo. Como uma dialética ambulante (seria cabível esse termo aqui?).
A delícia é não se sentir limitada, é poder transitar conforme o seu humor e poder se recolher numa boa, sem precisar de avisos ou perguntas. E as dores? Muitas. Quando todos se agrupam e você não se manifesta, você quase não é lembrada. Não faz falta. Sua figurinha não preenche o álbum porque simplesmente ninguém acha que você o compõe. E não compor álbum nenhum dói. Não é vitória como alguns enxergam ser. Não é ser bem-resolvido. É solidão na sua esfera mais áspera mesmo.

sábado, 5 de abril de 2008

...

“Eu poderia dizer que a vertigem é a embriaguez causada pela nossa própria fraqueza. Temos consciência da nossa própria fraqueza, mas não queremos resistir a ela e nos abandonar. Embriagamo-nos com nossa própria fraqueza, queremos ser mais fracos ainda, queremos desabar em plena rua, à vista de todos, queremos estar no chão, ainda mais baixo que o chão”.

(Milan Kundera, em A insustentável leveza do ser)