domingo, 23 de março de 2008

Da série: narrativa de metaformoses I

De súbito, lembrou-se da passagem de A paixão segundo G.H. onde Clarice narra o episódio da barata e riu em pensamento por causa da comparação esdrúxula. Mesmo que tentasse pensar, sabia que não conseguiria. Era coisa demais para a sua cabeça de ervilha. E se conseguisse? Teria medo? Constrangimento? Tudo que ela queria era a possibilidade de um botão de retroceder, entretanto não naquele exato instante. Ali, não sabia o que queria, mas desejava ter qualquer válvula escapatória pra quando processasse qualquer coisa. O pior é o fato de, no frigir dos ovos, não se tratar de uma questão de querer e, sim, de ser. Em quê se transformaria, pois? Seria muito ou pouco? Temia o buraco até então desmedido que sua alma fazia-lhe o favor de formar. – Ai! Deve ser denso -, pensava ela, captando os presságios. Já seria um caminho para algo maior que a liberdade que julgava conhecer? Tudo por causa de um momento em que resolvera afundar em si. Até pouco antes, havia uma barreira invisível que não a deixava ultrapassar as linhas-limites de si própria. Como um gole de uísque que nunca conseguiu dar, por anos, só por julgar ser muito forte. É claro que um dia até experimentou, mas fazendo questão de adicionar qualquer coisa mais doce e já conhecida. Infelizmente, ali não dava para misturar com açúcar mascavo. Engoliu a seco mesmo e, como se bloqueasse involuntariamente, nada sentiu, mas um pano de fundo lhe era muito claro: não tem volta, não tem volta, não tem. Quem era ela pra contrariar Caio Fernando Abreu quando disse que se você conseguir um dia realmente ver, você estará perdido, pois nunca vai conseguir voltar atrás no que viu e as coisas jamais voltarão a ser as mesmas?! Então se tudo que a gente percebe é porque já sentiu, estaria ela perdida? Pensou e suou frio.

3 comentários:

Adélia Danielli disse...

Há momentos essenciais, dos quais saberemos fragmentos por muito tempo.
São catarses, epifanías.
Não há como evitar, fugir ou ignorar, acontecem. E sim, são irremediáveis.
Por vc ter lembrado Caio,
"...ver é permitido, mas sentir já é perigoso. Sentir, aos poucos, vai exigindo uma série de outras coisas, até o momento em que não se pode mais prescindir do que foi simples constatação"

(Os Cavalos brancos de napoleão - C.F Abreu)


beijos, Delia

Anônimo disse...

Eu gostei de tudo que está nas entrelinhas. Veio a lembrança de arroubos juvenis, esta é uma boa sensação. E uma sensação que se deve guardar e colocar laços de seda só para ter o prazer de abrir diariamente.
Bravo pelo jeito sincero de reter e expor palavras, frases, senações.
;)

Anônimo disse...

Com as devidas correções que o teclado não permitiu no anterior:

Eu gostei de tudo que está nas entrelinhas. Veio a lembrança de arroubos juvenis, esta é uma boa sensação. É uma sensação que se deve guardar e colocar laços de seda só para ter o prazer de abrir diariamente.
Bravo pelo jeito sincero de reter e expor palavras, frases, sensações.